Seria abstrato exigir dessas tradições, que eram o patrimônio vivo de um povo e que lhe davam o sentimento de sua unidade e sustentavam sua fé, o rigor que um historiador moderno empregaria, mas seria igualmente descabido negar-lhes toda verdade por carecerem de tal rigor.
Os onze primeiros capítulos de Gênesis devem ser considerados á parte. Descrevem, de modo popular a origem do gênero humano; enunciam num estilo simples e figurado, tal como convinha é mentalidade de um povo não muito culto, as verdades fundamentais imprescindíveis para se entender a economia da salvação:
1- A criação por Deus no começo dos tempos,
2- A intervenção especial de Deus para formar o homem,
3- A mulher,
4- A unidade do gênero humano,
5- O pecado dos primeiros pais,
6- A ruína e
7- AS penas hereditárias que constituíram sua sanção.
Mas dessas verdades, que afetam o dogma e que são garantidas pela autoridade da Escritura, são ao mesmo tempo fatos, e se as verdades são certas, implicam fatos que são reais, embora não possamos precisar seus contornos sob a veste mítica que lhes foi dada, consoante a mentalidade da época e do ambiente.
A história patriarcal é uma história de família: Reúne as lembranças que se conservaram dos antepassados, Abraão, Isaac, Jacó e José. É uma história popular: detém-se nos episódios pessoais e nos traços pitorescos, sem nenhuma preocupação de relacionar essas narrações com história geral. É, enfim, uma história religiosa: todos os momentos decisivos são marcados por uma intervenção divina e neles tudo aparece como providencial, concepção teológica verdadeira sob um ponto de vista superior, mas que deixa na sombra a ação das causas segundas; além disso, os fatos são introduzidos, explicados e agrupados a fim de demonstrar uma tese religiosa: há um Deus que formou um povo e lhe deu um país; este Deus é IahweH, este povo é Israel, esta país é a Terra Santa. Mas esses relatos são históricos enquanto narram a seu modo acontecimentos reais e enquanto dão uma imagem fiel da origem e das migrações dos antepassados de Israel, de seus vínculos geográficos e étnicos e de seu comportamento moral e religioso. As suspeitas de que foram objeto esses relatos deveriam ceder diante do testemunho favorável que lhes trazem as descobertas recentes da história e da arqueologia orientais.
Depois de uma grande lacuna, o Êxodo e os Números, que têm seu eco nos primeiros capítulos do Deuteronômio, referem os acontecimentos que vão do nascimento á morte de Moisés: a saída do Egito, a permanência no Sinai, a caminhada até Cades, a marcha através da Transjordânia e a instalação nas estepes de Moab. Negar a realidade histórica desses fatos e da pessoa de Moisés é tornar inexplicáveis a história subseqüente de Israel, sua fidelidade ao javismo e sua devoção á Lei. É preciso reconhecer, contudo, que a importância dessas recordações para a vida do povo e o eco que elas tinham nos ritos deram aos relatos a cor de uma gesta heróica (por exemplo, a passagem do Mar) e por vezes de uma liturgia (como a Páscoa). Israel, que se tornou povo, faz então sua entrada na história geral e, embora nenhum documento antigo o mencione ainda, salvo uma alusão obscura na estrela do Faraó Merneptah, o que a Bíblia diz dele concordar, em linhas gerais, com o que os textos e a arqueologia nos informam sobre a descida dos grupos semíticos para o Egito, sobra a administração egípcia do Delta e a situação política da Transjoradânia.
A tarefa do historiador moderno é confrontar esses dados da Bíblia com os fatos da história geral. Com as reservas que impõem a insuficiência das indicações da Bíblia e a incerteza da cronologia extrabíblica, pode-se dizer que Abraão vivia em Canaã por volta de 1850 a .C., que José prosperava no Egito e que outros “filhos de Jacó” aí o encontraram pouco depois de 1700. No tocante á data do Êxodo, não podemos confiar nas indicações cronológicas de 1ª Rs.6:1 e Jz.11:26, que são secundárias e provém de cômputos artificiais. Mas a Bíblias contém uma indicação decisiva. De acordo com o texto antigo de Êx.1:11, os hebreus trabalharam na construção das cidades-entrepostos de Pitom e de Ramsés. O Êxodo é, pois, posterior ao início do reinado de Ramsés II, que fundou a cidade de Ramsés. Os grandes trabalhos nesta cidade começaram no princípio do seu reinado, e é verossímil que a partida do grupo de Moisés tenha acontecido na primeira metade ou nos meados desse longo reinado (1290-1224), digamos cerca de 1250 a .C. ou pouco antes. Se levarmos em conta a tradição bíblica sobre a estada no deserto durante uma geração, a instalação na Transjordânia ter-se-ia processado por volta de 1225 a.C. Essas datas concordam com as informações da história geral sobre a residência dos faraós da XIX Dinastia no Delta do Nilo, sobre o enfraquecimento do controle egípcio na Síria-Palestina, no final do reinado de Ramsés II, e sobre os tumultos que sacudiram todo o Oriente Médio no fim do século XIII. Concordam com as indicações da arqueologia sobre o começo da Idade do f erro, que coincide com o estabelecimento dos israelitas em Canaã.