Conclusão: quem é esse pregador? – Contracultura Cristã
Muitas pessoas, inclusive os adeptos de outras religiões e os que não têm nenhuma, dizem-nos que estão preparadas para aceitar o Sermão do Monte como contendo a verdade auto-evidente. Sabem que ele inclui sentenças tais como “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”, “Amai os vossos inimigos”, “Ninguém pode servir a dois senhores”, “Não julgueis, para que não sejais julgados” e “Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles”. Lindo! Aqui, dizem eles, Jesus de Nazaré é o mestre da moral em sua forma melhor e mais simples. Aqui está o âmago de sua mensagem antes de ser incrustada, por seus intérpretes, de adições sem valor. Aqui está o “Jesus original”, com ética simples e sem dogmas, um profeta da justiça, sem sofisticação, reivindicando ser nada mais que um mestre humano e nos dizendo que façamos o bem e que nos amemos uns aos outros. “O Jesus do dogma eu não entendo”, disse certa vez um professor hindu a Stanley Jones, “mas o Jesus do Sermão do Monte e da cruz eu amo e me sinto atraído por ele”. Semelhantemente, um mestre islâmico sufi disse-lhe que “quando lia o Sermão do Monte não podia conter as lágrimas”.[1]
Mas esta explicação popular do Sermão não pode ficar de pé após um exame detalhado. Ela está errada em dois pontos: primeiro, na sua opinião sobre o mestre e, segundo, na sua apresentação dos seus ensinamentos. Pois, ao examinarmos esses dois pontos mais detalhadamente, surge uma coisa muito diferente.
Consideramos no último capítulo as características dos ensinamentos de Jesus, o seu esboço da contracultura cristã e a sua chamada para o discipulado radical. Agora resta-nos considerar a excepcionalidade do mestre propriamente dito.
O que vamos descobrir é que é impossível construir um muro entre o Jesus do Sermão do Monte e o Jesus do restante do Novo Testamento. Em lugar disso, o pregador do Sermão do Monte é o mesmo Jesus sobrenatural, dogmático, divino, que se encontra em outros lugares. Portanto, a pergunta principal que se nos impõe, não é “O que fazer com estes ensinamentos?”, mas “Quem, afinal de contas, é esse mestre?” Esta foi certamente a reação daqueles que ouviram o Sermão pregado.
Quando Jesus acabou de proferir estas palavras, estavam as multidões maravilhadas da sua doutrina; 29 porque ele as ensinava como quem tem autoridade, e não como os escribas.
O que primeiro impressionou os ouvintes do Sermão (as multidões, como também os seus discípulos, 5:1) foi a autoridade extraordinária do pregador. Ele não titubeava nem hesitava. Não era inseguro, sentindo necessidade de se justificar, nem tampouco era extravagante ou empolado. Pelo contrário, com uma certeza calma e despretenciosa, expunha a lei para os cidadãos do reino de Deus. E estavam as multidões maravilhadas e (o termo grego aqui é muito forte) atônitas.[2] “Após mil e novecentos anos”, comenta A. M. Hunter, “nós ainda continuamos atônitos”.[3]
Portanto, seria proveitoso tentarmos analisar esta “autoridade” de Jesus, conforme exposta no Sermão. Sobre o que se firmava? De onde vinha a autoconsciência que o levava a falar deste modo? Que indicações o Sermão dá sobre como ele entendia a sua identidade e a sua missão? Não temos de procurar muito para encontrar as respostas a estas perguntas.
As multidões ficaram atônitas diante da sua doutrina, pois ele as ensinava com autoridade. Sim, ele se apresentou primeiro e mais do que tudo como um mestre, e deixava os seus ouvintes perplexos com o conteúdo, com a qualidade e com a maneira de expor a sua instrução. Mas, naturalmente, existiram milhares de outros mestres entre os judeus e outros povos. Muitos foram seus contemporâneos. O que, então, havia de tão especial nele? De uma certa forma, ele assumia o direito de ensinar a verdade absoluta. Ele era judeu, mas sua mensagem não era segundo os padrões judaicos. Ele estava interpretando a lei de Moisés, mas de tal modo a mostrar que era a lei de Deus. O que ele tinha a dizer não estava culturalmente condicionado, no sentido de ficar limitado a um povo em particular (os judeus) ou a um lugar em particular (a Palestina). Sendo absoluto, era universal. Portanto, ele falava como quem sabia o que estava falando. “Nós dizemos o que sabemos”, ele declarou em outro contexto.[4] Ele sabia quem seria grande no reino de Deus e quem seria o menor, quem era “bem-aventurado” diante de Deus e quem não o era, qual o caminho que leva à vida e qual à destruição. Com absoluta confiança em si mesmo, declarou quem herdaria o reino dos céus, quem herdaria a terra, quem obteria misericórdia, quem veria a Deus e quem estava apto a ser chamado filho de Deus. Como podia ele ter tanta certeza?
Comentaristas têm procurado uma linguagem adequada para descrever este sabor peculiar da doutrina de Jesus. Tenho colecionado algumas de suas tentativas, que tendem a descrever Jesus como um rei ou legislador. “Ele falou com realeza”, escreveu Spurgeon,[5] com “segurança real”,[6] ou com “soberania”. Stonehouse, p. 199. A expressão de Gresham Machen foi que “ele reivindicou o direito de legislar pelo reino de Deus”,[7] enquanto James Denney combinou as figuras de rei e legislador ao escrever sobre a sua “soberania prática sobre a consciência, a vontade e os afetos do homem” e a respeito de sua “autoridade moral suprema, legislando sem vacilação e exigindo obediência implícita”.[8] E Calvino disse que as multidões ficaram atônitas “porque uma majestade estranha, indescritível e fora do comum atraía para ele a mente dos homens”.[9]
Seus ouvintes naturalmente comparavam e contrastavam a pessoa dele com muitos mestres com os quais estavam familiarizados, especialmente os escribas. O que mais os surpreendia era que ele os ensinava como quem tem autoridade e de modo nenhum como os escribas, pois estes não tinham autoridade própria. Eles concebiam seu dever em termos de fidelidade à tradição que tinham recebido. Por isso, eram artiquários; mergulhavam em comentários, buscavam precedentes, reivindicavam o apoio de nomes famosos entre os rabinos. Sua única autoridade encontrava-se nas autoridades que constantemente citavam. Jesus, por outro lado, que não recebera formação de escriba,[10] escandalizava o conservadorismo de então, varrendo as tradições dos anciãos, sem reverência pelas convenções sociais e falava com uma originalidade própria que cativava alguns e enfurecia outros. A. B. Bruce resumia a diferença, dizendo que os escribas falavam “pela autoridade”, enquanto que Jesus falava “com autoridade”.[11]
Ele não ensinava como os escribas, e tampouco ensinava como os profetas do Velho Testamento. Estes não eram como os escribas, presos ao passado. Viviam no presente. Reivindicavam falar em nome de Jeová, de modo que a voz viva do Deus vivo se ouvia através dos seus lábios. Jesus também insistia que suas palavras eram as palavras de Deus: “O meu ensino não ê meu, e, sim, daquele que me enviou”.[12] Mas havia uma diferença. A fórmula mais comum com a qual os profetas introduziam seus oráculos era “Assim diz o Senhor”, expressão que Jesus nunca usou. Em vez disso, ele começava com “Em verdade, em verdade vos digo”, atrevendo-se assim a falar em seu próprio nome e com sua própria autoridade, a qual ele sabia ser idêntica à do Pai.[13] Este “Em verdade, em verdade vos digo” (amëèn lego humiri), ou “Eu vos digo” (lego humin) aparece seis vezes no Sermão do Monte (5:18; 6:2, 5, 16, 25, 29). Em mais seis ocasiões, isto é, nas seis antíteses do capítulo 5, encontramos uma asserção ainda mais forte com o seu egö enfático, “Mas eu vos digo” (egó de lego humin). Não que ele estivesse contradizendo Moisés, como já vimos mas, antes, as corrupções que os escribas faziam de Moisés. Todavia, quando o fazia, desafiava a tradição herdada há séculos e reivindicava substituí-la com a sua própria interpretação exata e autorizada da lei de Deus. Assim, ele “apresentava-se como um legislador, não como um intérprete; ordenava e proibia, abolia e prometia, sobre a sua palavra apenas”.[14]
Tão certo estava da verdade e da validade da sua doutrina, que disse que a sabedoria e a insensatez humanas deviam ser avaliadas pela reação àquela doutrina. As únicas pessoas sábias, deu ele a entender, eram aquelas que edificavam suas vidas sobre as suas palavras, obedecendo-lhes. Todas as outras pessoas eram néscias porque rejeitavam a sua doutrina. Ele podia até aplicar a si mesmo aquelas palavras da sabedoria personificada que aparecem em Provérbios 1:33: “O que me der ouvidos habitará seguro”. É prestando atenção a ele, a sabedoria de Deus, que o homem aprende a ser sábio.
Há evidências no Sermão do Monte, como em muitas outras partes da sua doutrina, de que Jesus sabia que viera ao mundo com uma missão. “Em vim”, ele diria[15] em diversas ocasiões no Evangelho de Mateus, referindo-se a si mesmo como o “enviado”.[16] Ele não viera, insistia em dizer, “para abolir a lei e os profetas”, mas para “cumpri-los” (plérõsaí).
A reivindicação pode parecer bastante inocente até que reflitamos sobre suas conseqüências. O que ele está asseverando é que todos os prenúncios e predições da lei e dos profetas encontravam seu cumprimento nele, e que, portanto, todas as linhas do testemunho do Velho Testamento convergiam nele. Ele não pensava em si mesmo como um outro profeta, nem sequer como o maior dos profetas, mas, antes, como o cumprimento de toda a profecia. Esta crença de que os dias de expectativa tinham acabado e que ele tinha introduzido o período do cumprimento estava profundamente enraizada na consciência de Jesus. As primeiras palavras registradas do seu ministério público foram: “O tempo está cumprido (peplêrõtai), e o reino de Deus está próximo”.[17] No Sermão do Monte há cinco referências diretas ao reino de Deus.[18] Decorrem delas, embora com diversos graus de clareza, que ele mesmo inaugurara o reino de Deus, e que ele tinha autoridade para admitir pessoas nesse reino e conceder-lhes as bênçãos do mesmo. Tudo isto significa, resumindo, que o próprio Jesus sabia ser o Cristo, o Messias de Deus da expectativa do Velho Testamento.
Já tivemos ocasião de observar que a concessão do título “Senhor” a Jesus não implica necessariamente num reconhecimento dele como o divino Senhor. Como N. B. Stonehouse explicou: “A flexibilidade da palavra grega ‘Senhor’ deve realmente ser reconhecida: nem todo exemplo do seu uso implica em uma consciência da divina autoridade. Nem todos os que se dirigiram a Jesus chamando-o de Senhor escolheram esse nome especificamente como o equivalente à divindade; como forma polida de tratamento, poderia significar um pouco mais do que o ‘senhor’ (com s minúsculo).”[19] Não obstante, em alguns contextos, Jesus parece deliberadamente aceitar todas as implicações que o título leva, como quando ele o associou a outro título favorito seu, “Filho do homem”, o qual na visão de Daniel receberia o domínio universal,[20] e com o “senhor” de Davi que se assentaria à direita de Deus.[21]
Apenas o contexto pode nos ajudar a julgar quanto domínio e quanta divindade podem ser adequadamente incluídos na palavra “Senhor”. Tomemos como exemplo a seção do Sermão do Monte na qual Jesus se referiu às pessoas que o chamavam de “Senhor, Senhor”.[22] Ele não estava se queixando porque tinham escolhido este título, pois o aceitava como apropriado. O que ele tinha contra era que eles o usavam superficialmente, sem lhe dar o devido significado. Ele não era simplesmente um “senhor” que devia ser respeitado; ele era o “Senhor”, que devia ser obedecido. O equivalente de Lucas torna claro este ponto: “Por que me chamais, Senhor, Senhor, e não fazeis o que vos mando?”[23] Portanto, Jesus via-se a si mesmo como mais do que um mestre, dando conselhos que as pessoas podiam atender ou não, a seu bel-prazer. Ele era senhor delas; dava ordens esperando ser obedecido, e as advertia de que o bem-estar eterno delas estava em jogo. Explicitamente, em tudo isto, Jesus não era simplesmente um rabino. Os alunos de um rabino judeu assentavam-se a seus pés para estudar o Tora. Jesus era rabino num certo sentido, uma vez que ensinava a seus discípulos o verdadeiro significado do Tora. Mas sua expectativa não era que simplesmente absorvesse seus ensinamentos, mas, sim, que se lhe devotassem pessoalmente. Isto, sem dúvida, era a razão por que não se contentava tão somente com o título “Rabi”, pois na verdade era seu “Mestre e Senhor”.[24] Foi por isso também que eles, por sua vez, não se tornaram simplesmente “rabis”, guardando e manejando a tradição de sua doutrina; eles também foram, muito mais, “testemunhas” dele.
Está claro no Sermão que Jesus conhecia o caminho da salvação e o ensinava. Ele foi capaz de declarar quem era bem-aventurado e quem não o era. Ele pôde apontar para a porta estreita, que levava ao caminho difícil para a vida. E foi bastante explícito sobre que espécie de casa sobreviveria às tempestades do juízo, e qual desmoronaria.
Mas, se penetrarmos mais profundamente em sua mensagem, descobriremos que ele não só ensinou a salvação; ele também a concedeu. Mesmo nas bem-aventuranças, ele aparece no papel daquele que virtualmente distribui bênçãos e concede o reino. O Professor Jeremias cita a insistência de J. Schniewind de que “as bem-aventuranças são testemunhos ocultos que Jesus deu de si mesmo como o salvador dos pobres, dos que choram, etc.”[25]
Ou consideremos como Jesus estabeleceu que os seus ouvintes, aquele grupinho de camponeses, eram “o sal da terra” e “a luz do mundo”. Como poderiam ter uma influência restritiva e iluminadora do mundo? Só por seguirem a Jesus. Porque Jesus não era mau, como todo o mundo,[26] nem partilhava das trevas universais, mas era a “luz do mundo”[27] e assim podia fazê-los sal e luz. É ainda mais significativo que, no Evangelho de Mateus, o Sermão do Monte (capítulos 5-7), característico das palavras de Jesus, é seguido da narrativa do seu ministério prático (capítulos 8 e 9), característico de suas obras. Aqui vemo-lo reivindicando autoridade para perdoar pecados e realmente conceder perdão a um paralitico (9:2-6), e então comparando-se, como salvador dos pecadores, a um médico dos doentes (9:12).
Todo o Sermão do Monte foi pregado ante o sombrio cenário do dia do juízo vindouro. Jesus sabia que este era uma realidade e desejava que o fosse nas mentes e nas vidas dos seus discípulos. Por isso declarou as condições da salvação e advertiu quanto às causas da destruição, especialmente em seu pitoresco retrato dos dois caminhos e dos dois destinos.
Muito mais notável que esta ênfase sobre a certeza de um juízo futuro foi a sua reivindicação de que ele mesmo seria o juiz.[28] O egocentrismo da cena que ele descreveu é notavelmente extraordinário. Três vezes usou os pronomes pessoais “eu” e “me”. Primeiro, ele mesmo seria o Juiz, ouvindo as provas indiciadoras e enunciando a sentença. Daquele solene dia, ele disse: “Muitos me dirão naquele dia, Senhor, Senhor . . . Então lhes direi…” Assim, os acusados lhe endereçarão seu caso e ele lhes responderá. Apenas ele, ninguém mais, decidirá e declarará o destino deles. Segundo, o próprio Jesus será o critério de julgamento. As pessoas apresentarão como evidência o uso que fizeram do seu nome, bem como os seus ministérios; mas isto será inadmissível como evidência. “Nunca vos conheci”, lhes dirá. O destino dos seres humanos dependerá, não do seu conhecimento e do uso que fizerem do seu nome, mas do conhecimento que tiverem dele pessoalmente. Nenhum serviço prestado a Cristo, mas o relacionamento com Cristo, será o tema. Terceiro, a sentença que Jesus pronunciar também se relacionará com ele: “Apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade.” A hediondez da “perdição”[29] e da “ruína”[30] que ele predisse será o banimento de sua presença. Destino pior não poderia ser descortinado, deu a entender, do que a eterna separação dele.
Assim, o carpinteiro de Nazaré fez-se a figura central do dia do juízo. Ele mesmo assumirá o papel de Juiz (e mais tarde, no Evangelho de Mateus, ele descreve mais detalhadamente como “se assentará no trono da sua glória”).[31] Além disso, a base do julgamento será a atitude das pessoas em relação a ele, e a natureza do julgamento será exclusão de sua presença. Seria difícil exagerar a assustadora egocentricidade destas reivindicações.
No Sermão do Monte, Jesus dá-nos uma doutrina compreensiva de Deus. Ele é o Criador, o Deus vivo da ordem natural, que dá o sol e a chuva, que alimenta as aves, que veste as flores e supre as necessidades vitais dos seres humanos. Ele é também o Rei, cujo governo justo e salvador irrompeu nas vidas humanas através de Jesus. Mas acima de tudo (e novamente através de Jesus) ele é o nosso Pai. Dirigindo-se aos discípulos, Jesus constantemente referia-se a ele, chamando-o de “vosso Pai que está nos céus”, de quem eram filhos, cuja misericórdia deviam copiar, em cuja amorosa providência deviam confiar e do qual deviam se aproximar em oração, sabendo que ele jamais lhes daria alguma coisa que não fossem “boas dádivas”.
Em todos estes discursos, Jesus chamava Deus de “vosso Pai”. E uma vez referiu-se “à vontade de meu Pai”.[32] Nunca, porém, ele se inclui entre os discípulos para falar de Deus como o “nosso Pai”. Naturalmente disse-lhes que eles orassem “Nosso Pai”,[33] mas não se associou a eles nisso. Na verdade, não poderia, pois, embora desse a seus discípulos o privilégio de dirigir-se a Deus com o mesmo título de intimidade que ele usava (“Abba, Pai”), continuava profundamente cônscio de que Deus era seu Pai em um sentido totalmente diferente, único. Mais tarde, ele expressaria isto em palavras também registradas por Mateus: “Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho senão o Pai; e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar”.[34] Esta filiação exclusiva Jesus não reivindicou nem declarou explicitamente no Sermão do Monte, mas ficou implícita no uso preciso dos possessivos “meu Pai”, “vosso Pai”, “nosso Pai”.
Entendo que, sempre que nos aventuramos a investigar a consciência que Jesus tinha de sua divindade, tentamos mergulhar em águas profundas demais para serem sondadas. Que ele conhecia a Deus como “meu Pai” está claro; também está claro que sabia de sua própria filiação excepcional. Mas agora podemos arriscar mais um passo, pois temos evidências de que ele se considerava igual a Deus, um só com Deus. Não que ele o dissesse explicitamente no Sermão, mas as reivindicações de exercer prerrogativas divinas, bem como o seu modo de falar de si mesmo dão a entender isso. Podemos apresentar três exemplos.
O primeiro refere-se à bem-aventurança final. É preciso lembrar que as oito bem-aventuranças são generalizações na terceira pessoa (“Bem-aventurados os mansos, os misericordiosos, os pacificadores”, etc), enquanto que a nona muda para a segunda pessoa, quando Jesus se dirige a seus discípulos: “Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós. Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós”.[35] É esta analogia com os profetas que é impressionante. A lógica parece ser esta: Jesus espera que seus discípulos tenham de sofrer por causa dele (“por minha causa”), e então compara essa perseguição com a dos profetas do Velho Testamento. Aqueles profetas sofreram por causa de sua fidelidade a Deus, enquanto que os discípulos de Jesus sofreriam por sua fidelidade para com ele. Daí se conclui que, ao comparar os seus discípulos aos profetas de Deus (e mais tarde ele os “enviou” como os profetas foram “enviados”),[36] ele está comparando-se a Deus. Como Crisóstomo explicou no fim do quarto século, “Aqui ele . . . veladamente indica a sua própria dignidade, e a sua igualdade na honra com aquele que o gerou”.[37] Um equivalente similar percebe-se em dois outros exemplos. Quando ele os advertiu de que uma pessoa que simplesmente o chamasse de “Senhor, Senhor” não entraria no reino dos céus, seria de se esperar que ele continuasse dizendo “mas aquele que se submete ao meu senhorio”, ou “mas aquele que me obedece como Senhor”. E isto é o que, de fato, encontramos na versão do Sermão em Lucas, onde chamá-lo de “Senhor, Senhor” é contrastado com o fazer o que ele diz. Mas, de acordo com Mateus 7:21, ele continuou: “Mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus”. Se, então, Jesus considerava o obedecer-lhe como Senhor e o fazer a vontade do Pai como coisas equivalentes, estava se colocando no mesmo nível de Deus. É ainda mais impressionante porque Jesus não se empenhou nesta declaração sobre si mesmo. Este não era o seu propósito no contexto. Esta prova de consciência de sua divindade escapou quando ele falava sobre uma coisa totalmente diferente, isto é, o significado do verdadeiro discipulado.
O mesmo é verdade no terceiro exemplo. Encontra-se nos versículos seguintes, que falam do dia do julgamento e já foram mencionados. Todos sabem que Deus é o Juiz. E Jesus também. Aqui, ele não antecipou uma declaração direta e específica de que Deus lhe confiara o julgamento do mundo. Ele simplesmente sabia que, no último dia, as pessoas lhe apelariam e que então ele teria a responsabilidade de declarar-lhes a sentença. E, ao dizê-lo, novamente igualou-se a Deus.
Eis aqui, portanto, o seu “Jesus original”, o seu “simples e inofensivo mestre da justiça”, cujo sermão do Monte contém “ética simples e nenhum dogma”! Ele ensina com a autoridade de Deus e declara a lei de Deus. Ele espera que as pessoas edifiquem a casa de suas vidas sobre as palavras dele, e acrescenta que só aqueles que o fazem são sábios e estarão seguros. Ele diz que veio para cumprir a lei e os profetas. Ele é o Senhor que deve ser obedecido e o Salvador que concede bênçãos. Ele se coloca no papel central do drama do dia do juízo. Ele fala de Deus, chamado-o de seu Pai num sentido único, e finalmente dá a entender que faz o que Deus faz, e que o que as pessoas lhe fazem estão fazendo para Deus.
Não se pode fugir do que em tudo isso implica. As reivindicações de Jesus foram verdadeiramente expostas com tanta naturalidade e modéstia e de maneira tão indireta que muitas pessoas jamais as percebem. Mas estão aí; não podemos ignorá-las e ainda assim manter a nossa integridade. Ou elas são verdadeiras, ou Jesus sofria de uma coisa que C. S. Lewis chamou de “megalomania aguda”. Mas poderia alguém defender seriamente que a ética sublime do Sermão do Monte é produto de uma mente perturbada? É preciso um alto grau de cinismo para chegar a tal conclusão.
A única alternativa é aceitar Jesus ao pé da letra, e suas reivindicações pelo que realmente são. Neste caso, devemos aceitar o seu Sermão do Monte com seriedade extrema, pois aqui está o quadro que ele apresenta da sociedade alternativa de Deus. São os padrões, os valores e as prioridades do reino de Deus. Com demasiada freqüência, a Igreja tem se afastado deste desafio, mergulhando numa respeitabilidade burguesa e conformista. Nessas ocasiões fica quase impossível distingui-la do mundo: perde a sua salinidade, a sua luz se extingue e ela repele todos os idealistas, pois não dá evidências de ser a nova sociedade de Deus que já está desfrutando das alegrias e do poder da era vindoura. Só quando a comunidade cristã viver pelo manifesto de Cristo é que o mundo será atraído e Deus, glorificado. Portanto, quando Jesus nos chama é para isto que o faz, pois ele é o Senhor da contracultura!
[1] Christ at the Round Table, Stanley Jones (Abingdon, 1938), pp. 38, 60.
[2] Lenski, p. 314
[3] p. 96.
[4] Jo3:ll.
[5] p.46.
[6] Plummer, p. 117.
[7] Christianity and Liberalism, (1923; Eerdmans, s.d.), p. 36.
[8] Studies in Theology, palestras feitas em 1894; (Hodder, 1906), pp. 31, 42.
[9] p.371.
[10] cf.Jo7:15.
[11] p. 136.
[12] Jo7:16.
[13] cf. Jo 14:8-11.
[14] Plummer,p. 118.
[15] 5:17; 9:13; 10:34; 11:3,19; 20:28.
[16] 10:40; 15:24; 21:37.
[17] Mc 1:15; cf. Mt 4:17.
[18] 5:3, 10; 6:10, 33; 7:21.
[19] p.254.
[20] Dn 7:14; Mt 24:39,42, “vosso Senhor”.
[21] Mc 12:35-37.
[22] Mt 7:21-23.
[23] Lc6:46
[24] Jo 13:13
[25] Jeremias, p. 24.
[26] 7:11
[27] Jo8:12
[28] 7:22,23.
[29] Mt7:13
[30][30] Mt7:27.
[31] 25:31ss.
[32] Mt7:21.
[33] Mt6:9.
[34] 11:27.
[35] Mt5:11, 12.
[36] cf. Mt 10:1ss.
[37] pp. 207 ss.