Composição Literária

O Pentateuco
27/07/2014
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A composição desta vasta coletânea era atribuída a Moisés pelo menos desde o começo de nossa era, e Cristo e os Apóstolos conformaram-se com esta opinião (Jo.1:45; 5:45-47; Rm.10:5). Mas as tradições mais antigas jamais haviam afirmado explicitamentee que Moisés tivesse sido o redator de todo o Pentateuco. Quando o próprio Pentateuco diz – o que é muito raro – que “Moisés escreveu”, aplica essa fórmula a alguma passagem particular. Efetivamente, o estudo moderno desses livros apontou diferenças de estilo, repetições e desordens nos relatos, que impedem de ver no Pentateuco uma obra que tenha saído toda ela da mão de um só autor. Depois de longas hesitações, no fim do século XIX uma teoria conseguiu impor-se aos críticos sobretudo por influência dos trabalhos de Graf e de Wellhausen: o Pentateuco seria a compilação de quatro documentos, diferentes de origens, mas todos eles muito posteriores a Moisés. Teria havido primeiramente duas obras narrativas:

 

1ª- O JAVISTA (J), que desde o relato da criação usa o nome IahweH, com o qual   Deus se revelou a Moisés.

2ª- ELOISTA (E),    que designa a Deus pelo nome comum de Elohîms.

 

O Javista teria sido escrito no século IX em Judá, e o eloísta um pouco mais tarde em Israel. Depois da ruína do reino do Norte, os dois documentos teriam sido reunidos num só (JE); depois de Josias, o Deuteronômio lhe teria sido acrescentado (JED); e, depois do Exílio, o código Saacerdotal (P), que continha sobre tudo leis, com algumas narrações, teria sido somada a essa compilação, á qual serviu de arcabouço e de moldura (JEDP).

Essa teoria documentária clássica, que aliás estava ligada a uma concepção evolucionista das idéias religiosas em Israel, tem sido muitas vezes resposta em discussão; alguns ainda a rejeitam totalmente, outros não a aceitam senão com modificações, ás vezes importantes, e não se encontram dois autores que estejam de pleno acordo quanto á distribuição exata dos textos pelos diferentes “documentos”. Atualmente os especialistas concordam em reconhecer que a simples crítica verbal não basta para explicar a composição do Pentateuco. É preciso fazer também um estudo das formas literárias e das tradições, orais ou escritas, que precederam a redação das fontes. Cada uma delas, mesmo a mais recente (P),contém elementos muito antigos. A descoberta das literaturas mortas do Oriente Médio e os progressos feitos pela arqueologia e pela história no conhecimento das civilizações vizinhas de Israel mostraram que muitas leis ou instituições do Pentateuco tinham paralelos extrabíblicos  bem anteriores ás datas atribuídas aos “documentos” e que numerosos relatos supõem um ambiente diferente e mais antigo daquele em que estes documentos teriam sido redigidos. Vários elementos tradicionais eram conservados nos santuários ou eram transmitidos pelos narradores populares. Foram agrupados em ciclos e depois postos por escrito sob a pressão de um ambiente ou pela mão de uma personalidade dominante. Mas essas redações não constituíram um termo em si mesmas: elas foram revisadas, receberam complementos, foram enfim combinadas entre si para formar o Pentateuco que nós possuímos. As “fontes” escritas do Pentateuco são momentos privilegiados de uma longa evolução, são pontos de cristalização das correntes de tradição que se originaram mais acima e que em seguida continuaram seu fluxo.

A pluralidade dessas correntes de tradição é um fato evidenciado pelas duplicatas, repetições, discordâncias, que chamam a atenção do leitor desde as primeiras páginas do Gênesis:

 

1)- Dois relatos da criação (1:1 – 2:4ª e 2:4b – 3:24);

2)- Duas genealogias de Caim-Cainã (4:17s e 5:12-17);

3)- Dois relatos cominados do Dilúvio (6 –8);

4)- Duas expulsões de Agar (16 e 21);

5)- Três narrações da desventura da mulher de um patriarca em país estrangeiro (12:10-20; 20; 26:1-11);

6)- Duas histórias combinadas de José e seus irmãos nos últimos capítulos do Gênesis.

7)- Duas narrações da vocação de Moisés (Êx.3:1 – 4:17 e 6:2 – 7:7);

8)- Dois milagres da água em Meribá (Êx.17:1-7 e Nm.220:1-13);

9)- Dois textos do Decálogo (Êx.20:1-17 e Dt.5:6-21);

10)- Quatro calendários litúrgicos (Êx.23:14-19; 34:18-23; Lv.23; Dt.16:1-16).

 

Podemos citar muitos outros exemplos. Os textos se agrupam por afinidades de línguas, de forma, de conceitos, que determinam linhas de força paralelas, cuja trajetória pode-se seguir através do Pentateuco. Elas correspondem a quatro correntes de tradição.

 

I –  A TRADIÇÃO “javista” (assim chamada porque utiliza o nome divino IahweH desde a narração da criação) tem um estilo vivo e colorido; numa forma  cheia de imagens e com um modo de narrar realmente magistral, ela dá uma resposta profunda aos graves problemas que se apresentam a todo homem, e as expressões humanas de que se serve para falar de Deus encobrem um senso muito elevado do divino. Como prólogo á história dos antepassados de Israel, ela colocou um sumário da história da humanidade desde a criação do primeiro casal. Esta tradição teve origem em Judá e talvez tenha sido escrita, quando ao essencial, no reinado de Salomão. No conjunto dos textos que lhe são atribuídos, distingue-se ás vezes uma corrente paralela, que tem a mesma origem, mas que reflete concepções por vezes mais arcaicas e por vezes diferentes, designada pelas siglas J¹ (Javista primitiva), ou L (fonte “Leiga”), ou N (fonte “Nômade”). A distinção parece Ter fundamento, mas é difícil de definir-se se trata de uma corrente independente ou de elementos que o Javista integrou respeitando sua individualidade.

 

II – A TRADIÇÃO  “eloísta” (que tem por característica mais saliente o emprego do nome comum Elohîm para designar a Deus) distingue-se da tradição javista por um estilo sóbrio e também mais uniforme, uma moral mais exigente, um cuidado de respeitar a distância que separa o homem de Deus. Os relatos das origens  faltam nessa tradição, que só começa com Abraão. Provavelmente ela é mais recente que a tradição javista e em geral é relacionada com as tribos do Norte. Certos autores não aceitam a existência de uma tradição eloísta independente e julgam suficiente a hipótese de complementos acrescentados á obra javista ou de uma revisão desta obra. Contudo, sem falar nas particularidades do estilo e da doutrina , a diferença dos ambientes de origem e a continuidade dos paralelos, e também algumas divergências com a tradição javista desde a história de Abraão até aos relatos da morte de Moisés favorecem a  teoria de uma tradição de uma redação anteriormente independentes.

É preciso então levar em conta um fato importante. Apesar dos traços que os distinguem, os relatos javistas e eloístas contam substancialmente a mesma história: essas duas tradições têm, pois, uma origem comum. Os grupos do sul e os do norte partilhavam uma mesma tradição, que colocava em ordem as recordações do povo sobre sua história:

1- A sucessão dos três Patriarcas, Abrão, Isaac e Jacó,

2- A saída do Egito unida á teofania do Sinai, a conclusão da Aliança no Sinai ligada á instalação na Transjordânia, última etapa antes da conquista da Terra Prometida. Essa tradição comum se formou, oralmente e talvez já por escrito, na época dos Juízes, isto é, quanto Israel começou a existir como povo.

 

III – TRADIÇÃO SACERDOTAL. AS tradições javista e eloísta contêm muito poucos textos legislativos; o mais considerável é o código da Aliança, sobre o qual falaremos depois. As leis constituem, ao contraio, a parte principal da TRADIÇÃO “sacerdotal”, que demonstra um interesse especial pela organização do santuário, pelos sacrifícios e festas e pela pessoa e funções de Aarão e de seus descendentes. Além dos textos legislativos ou institucionais, ela contém também partes narrativas, que são bastante ampliadas quando servem para exprimir o espírito legalista ou litúrgico que a anima. Gosta dos cômputos e das genealogias; seu vocabulário particular e seu estilo geralmente abstrato e redundante a tornam facilmente reconhecível. Esta tradição se deve aos sacerdotes do templo de Jerusalém. Embora preserve elementos antigos, ela só se constitui durante o Exílio e se impôs somente depois do retorno; nela se distinguem várias camadas redacionais. É aliás difícil decidir se essa tradição sacerdotal teve uma existência independente como obra literária ou se – o que é mais verossímil – um ou diversos redatores representantes dessa tradição incluíram seus elementos nas tradições já existentes e, num trabalho editorial, deram ao Pentateuco sua forma definitiva.

É bastante fácil seguir no Gênesis o fio das tradições javista, eloísta e sacerdotal. Depois do Gênesis, a corrente sacerdotal pode ser identificada sem dificuldade, especialmente no fim do Êxodo, em todo o Levítico e em grandes seções dos Números, mas torna-se mais difícil repartir o resto entre as correntes javista e eloísta. Depois de Números e até os derradeiros do Deuteronômio (3 e 32) essas três correntes desaparecem e  são substituídas por uma tradição única.

 

IV – TRADIÇÃO DEUTERONÔMIO. Ela se caracteriza por um estilo muito particular, amplo e oratório, onde voltam sempre as mesmas fórmulas bem construídas, e por uma doutrina constantemente afirmada: dentre todos os povos, Deus, por puro beneplácito, escolheu Israel como seu povo, mas esta eleição e o pacto que a sanciona têm como condição a fidelidade de Israel á lei de seu Deus e ao culto legítimo, que lhe deve prestar num santuário único. O Deuteronômio é o ponto onde aportou uma tradição que tem parentesco com a corrente eloísta e com o movimento profético, e cuja voz já se percebe em textos relativamente antigos. O núcleo do Deuteronômio pode apresentar costumes do Norte trazidos para Judá pelos levitas depois da ruína de Samaria. Estas lei, talvez já enquadrada num discurso de Moisés, foi depositada no templo de Jerusalém. Lá ela foi encontrada no reinado de Josias, e a sua promulgação ajudou a promover a reforma religiosa. Uma nova edição foi publicada no começo do Exílio.

 

A partir desses diversos blocos da tradição, o crescimento do Pentateuco se processou em várias etapas cujas datas, porém é difícil precisar. As tradições javista e eloísta foram combinadas em Judá pelo fim da época monárquica, talvez no reinado de Ezequias, quando, segundo nos informa Pv.25:1 foram combinadas antigas obras literárias. Antes do fim do Exílio o Deuteronômio, considerado como uma lei dada por Moisés em Moab, foi inserido entre o fim de Números e os relatos sobre a nomeação de Josué e a morte de Moisés (Dt.31 e 34). É possível que a adição da tradição sacerdotal ou, se lhe preferir, a intervenção dos primeiros redatores sacerdotais tenha sido feita pouco depois. Em todo caso, a “Lei de Moisés” trazida de Babilônia por Esdras parece representar todo o Pentateuco já próximo de sua forma final.

 

AS relações entre o Pentateuco e os livros bíblicos seguintes deram ocasião a hipóteses contrárias. Desde muito tempo, certos autores falam de um “Hexateuco”, obra em seis livros, que teria incluído também Josué e o começo dos Juízes. Com efeito, eles aí encontram a continuação das três fontes: Javista, Eloísta, Pentateuco, do Pentateuco e notam que o tema da promessa, que volta com tanta freqüência os relatos do Pentateuco, exige que esses relatos tenham narrado também a sua realização, que é a conquista da Terra Prometida. O livro de Josué teria sido depois separado desse conjunto e se tornado o primeiro dos livros históricos. Autores mais recentes falam, ao contrário, de um “Tetrateuco”, uma obra em quatro livros, que não teria incluído o Deuteronômio, o qual teria a princípio servido de introdução a uma grande “história deuteronomista” que se estenderia até o fim de Reis. O Deuteronômio, posteriormente, teria sido desligado desse conjunto quando se quis reunir num mesmo bloco, o nosso Pentateuco, isto é, tudo o que se referia á pessoa e á obra de  Moisés. É esta Segunda opinião que será adotada, com reservas, na introdução aos livros históricos e que é suposta por algumas das notas. Mas reconhecemos que se trata apenas de uma hipótese, como o é também a opinião concorrente, a de um Hexateuco.

Já vimos que a mesma incerteza pairava sobre muitas questões que a composição do Pentateuco suscita. Ela se prolongou por seis séculos, no mínimo, e reflete as mudanças da vida nacional e religiosa de Israel. Todavia, apesar dessas vicissitudes, o desenvolvimento se apresenta finalmente homogêneo. Dissemos que as tradições narrativas se originaram na época em que se formava o povo de Israel. As  mesmas observações podem ser feitas com certas nuanças, sobre as partes legislativas: elas contém um direito civil e religioso que evolui juntamente com a comunidade que ele regia, mas sua origem se confunde com a do povo. Essa continuidade tem um fundamento religioso: foi a fé em IahweH que cimentou a unidade do povo, e foi a mesma fé que unificou o desenvolvimento da tradição. Ora, os começos do javismo são dominados pela personalidade de Moisés. Foi ele o iniciador religioso do povo e seu primeiro legislador. As tradições anteriores que tiveram nele seu termo e a lembrança dos acontecimentos que ele presidiu tornaram-se a epopéia nacional; a religião de Moisés marcou para sempre a fé e as práticas do povo; a lei de Moisés ficou sendo sua norma. As adaptações exigidas pela mudança dos tempos foram feitas segundo seu espírito e se cobriram com sua autoridade. Pouco importa que não possamos atribuir-lhe com certeza a redação de nenhum dos textos do Pentateuco; é ele o seu personagem central e a tradição judaica tinha razão de chamar o Pentateuco de livro da Lei de Moisés.

Pr.Raul
Pr.Raul
Pastor do Ministério Nascido de Novo e coordenador do Seminário Teológico Nascido de Novo, Youtuber e marido da Irmã Vanessa Ângelo.

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